sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

A importância da criação
Mas que dizer da importância relativa da criação, o fator causal mais popular (tanto em nível de senso comum como em profissionais de psicologia) para explicar a personalidade de um sujeito adulto? Um adulto não se torna agressivo devido a forma como é criado pelos pais? A infância não é um período de molde, vital para a estruturação da personalidade adulta, e os pais não são a mais importante fonte de estímulos para o desenvolvimento?
Na realidade, existem evidências sólidas em estudos de grande escala, metodologicamente convincentes, de que os genes influenciam a personalidade adulta. Surpreendentemente, o mesmo não é verdadeiro para a hipótese do papel preponderante da criação pelos pais. Uma revisão crítica da literatura mostra pouca evidência conclusiva quanto ao ponto de vista de que eventos específicos do período de infância são os verdadeiros responsáveis pela arquitetura da personalidade adulta (Seligman, 1995; Harris, 1998; Bouchard & McGue, 1990; Dunn & Ploomin, 1990; Ploomin, 1990; Ploomin & Bergeman, 1991; Heath, Eaves & Martin, 1988; Plomin & McClearn, 1993).
É necessário salientar que uma das mais importantes fontes de evidência para a “hipótese da criação” (Harris,1998) -os estudos de continuidade entre a infância e a idade adulta –são, em sua esmagadora maioria correlações entre essas duas variáveis. A possibilidade de que uma terceira variável, como a influência dos genes dos pais, tenha relação causal com a estrutura da personalidade adulta, simplesmente não é testada ou refutada. Exemplos desta falha metodológica são abundantes, como a correlação entre forma de tratamento que a mãe dá ao seu filho e a criminalidade mais tarde na vida adulta (Stattin & Klackenberg-Larsson, 1990) ou então a suposta ligação entre traumas infantis e tentativas de suicídio na idade adulta (Kolk, Perry & Herman, 1991). Como poderíamos saber ou mesmo descartar a influência dos genes nestas manifestações comportamentais?
Em um estudo feito na Dinamarca, um país onde as adoções e também os registros criminais são feitos meticulosamente, todos os meninos adotados em Copenhage em 1953 foram acompanhados (Mednick e Christiansen, 1977). Descobriu-se com base nos registros criminais dos pais (biológicos e adotivos) e dos filhos quando adultos que somente cerca de 11-12% destes cometia crimes se o pai biológico, doador de 50% dos genes, nunca houvesse cometido um crime. Isso tanto para crianças adotadas pôr pais adotivos criminosos ou não. Ou seja, não houve diferença significativa na criminalidade pela influência de ser criado por um pai adotivo criminoso.
Mas a complexidade das interações gene-ambiente se evidenciam quando observamos o restante dos dados obtidos neste estudo. Se a criança adotada tinha um pai biológico criminoso, e portanto tinha alta chance de apresentar genes relacionados à modulação deste comportamento, quase o dobro apresentava criminalidade (cerca de 22%). O pai natural não tinha contato com a criança desde os seis meses de idade. No entanto, talvez como resultado de fatores epigenéticos os filhos de pais criminosos adotados pôr pais também criminosos tinham uma incidência de 36% de crime- o que mostra uma influência reforçadora do meio nesse aspecto particular, mas em interação com os genes.
No entanto, de modo geral podemos dizer que, se de um lado temos pouca evidência convincente sobre a influência de eventos atribuíveis às interações com os pais durante a infância na personalidade adulta, por outro temos estudos apontando que gêmeos idênticos são muito mais semelhantes um com o outro quando adultos do que gêmeos fraternos criados juntos- e isso acontece mesmo que os gêmeos idênticos sejam criados em continentes diferentes, experienciando culturas diversas, diferentes sistemas religiosos, estrutura social, tipo de alimentação e outros fatores ambientais! Essas semelhanças foram verificadas em características como habilidades e deficiências cognitivas, depressão, raiva, bem estar subjetivo, otimismo, pessimismo e mesmo traços como religiosidade, autoritarismo, satisfação no trabalho e muitos outros (Seligman, 1995; Harris, 1998; Bouchard & McGue, 1990; Dunn & Ploomin, 1990; Ploomin, 1990; Ploomin & Bergeman, 1991; Heath, Eaves & Martin, 1988; Plomin & McClearn, 1993).
Como argumento adicional, foi possível observar que os filhos adotados não crescem com personalidade semelhante aos seus pais adotivos; na verdade, são muito mais parecidos com seus pais biológicos, embora muitas vezes não tenham sequer os conhecido!
É evidente que os fatores não genéticos são muito importantes, e é justamente a genética comportamental que oferece substrato a essa afirmação. Mas, novamente, um exame desapaixonado das evidências aponta conexões causais diferentes do senso comum. É importante lembrar que as influências ambientais, ou não genéticas, incluem fatores que incidem desde a concepção até o nascimento (influências fetais de níveis hormonais por exemplo) e a totalidade dos estímulos do meio durante o desenvolvimento da pessoa após o nascimento.
Se o que estamos procurando é um período “modelar” no desenvolvimento, e um conjunto de fatores que possam prever e explicar o padrão de comportamento de um sujeito adulto, não parece existir muita base racional para acreditar na noção de que a forma de criação pelos pais desenhe decisivamente a personalidade. Podemos encontrar fatores causais de maior poder preditivo olhando para o DNA e para os grupos de referência com os quais a criança interage. Harris (1998) por exemplo dedica seu livro “The nurture assumption” (já publicado em português) a refutar esse exagero do papel causal dos pais em contraste com um “pacote” de estimulação ambiental extremamente negligenciado mas muito mais influente na formação da personalidade, e que não se passa somente na primeira infância: a socialização dos filhos a partir de seu grupo de amigos.
O argumento de Harris (1998) envolve uma compreensão mais sofisticada do tipo de ambiente psicológico para o qual nossa mente teria sido preparada para lidar. Normalmente uma das premissas implícitas presentes no raciocício dos teóricos do desenvolvimento e da personalidade é a consideração de que os pais são nossa principal fonte de estímulos, na principal idade de moldagem da personalidade. Através de uma ampla revisão em estudos etológicos, primatologia comparativa, experimentos em psicologia social, dados etnográficos de sociedades caçadoras coletoras e estudos com bebês humanos podemos concluir que na verdade as crianças não foram projetadas para aprender e imitar os pais, mas sim as outras crianças, particularmente as mais velhas. Segundo Harris (1998) é isto que aconteceu em nosso passado evolucionário, e provavelmente o cérebro humano está configurado para processar informação específica do meio social, buscando a inserção do sujeito nas complexas hierarquias de dominância características de nossa espécie. Em outras palavras, a informação assimilada através da socialização pela interação com crianças seria prioritária e mais influente (pelo menos na formação da personalidade do adulto) do que a informação adquirida através das interações com os pais em um período limitado da infância. E o período de moldagem seria portanto mais extenso, incluindo aspectos importantes como os grupos de referência na adolescência.

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